Os piores carros que já testei em 50 anos como jornalista automotivo

E olha que, nesse meio século, testei muita coisa ruim aqui no Brasil e mundo afora. Depois de listar, ao longo dessas cinco décadas, os carros mais legais que guiei, chegou a hora de falar do outro lado da moeda: os piores. Algumas marcas nem sequer estão mais no mercado brasileiro, pois, de produtos tão ruins, não conquistaram nosso público. Outras, em virtude dos seus técnicos, engenheiros ou até diretores já estarem aposentados, ou até mesmo falecidos, vou me limitar a contar o caso sem citar a marca ou o modelo em questão. Mas, para bom entendedor, meia palavra basta.  

O que me vêm à mente quando lembro de um carro ruim foi a do jipe russo Niva, fabricado pela Lada. Nessa época, começo dos anos 90, eu estava na revista Quatro Rodas, e compramos um carro desses para o famoso teste de Longa Duração, onde avaliaríamos a qualidade do produto, o serviço prestado por sua rede de concessionárias nas revisões e fornecimento de peças, e qual seria o desempenho do carro ao longo de, na época, 50 mil km. O carro, originariamente, era equipado com um motor 1.6 carburado e com sistema de ignição ainda por platinado. Somados à tração traseira padrão, tínhamos uma receita muito convencional. 

Impossível para mim falar de carros ruins que testei sem lembrar do Niva (Foto: Lada/divulgação)

A expectativa era que o Niva fosse um trator, inquebrável, afinal de contas, para andar pelas precárias vias russas, essas eram características fundamentais. Na realidade, o carro mostrava-se quase impraticável no uso urbano: além de descômodo e com desempenho apenas aceitável, seu consumo de gasolina era altíssimo quando se considerava o porte do jipe. E, o que era pior, sua transmissão era tão ruidosa que atrapalhava até mesmo o som do rádio, que precisava ter o volume muito aumentado para ser ouvido pelos ocupantes.  

Tivemos que encerrar o teste da unidade de Longa Duração antes: não tinha quem o quisesse guiar (Foto: Lada/divulgação)

Essas características negativas ao extremo fizeram com que, cada vez menos, tivéssemos pessoas interessadas em utilizar o carro no seu dia-a-dia, viajando ou na cidade, de maneira que não conseguíamos fazer seu odômetro caminhar rumo aos 50 mil km dentro do prazo. Ninguém queria andar de Niva! Por essas e outras, o teste terminou prematuramente, ao redor dos 10 mil km, por absoluta falta de pessoas que encarassem a direção do Lada.  

Mas para quem pensa que os russos só vacilaram no Niva, é porque não conheceram o tal Lada Samara. Era, na época, apontado como um carro moderno projetado pelos habitantes da terra da Vodka e o interessante era que, na época, falava-se que a Italdesign, do mago Giugiaro, havia dado palpites nas suas linhas, mas os italianos nunca reconheceram esse feito. Fica o dito pelo não dito. Na época, os representantes da Lada no Brasil também anunciavam que a Porsche havia ajudado no projeto mecânico do Samara, mas isso os alemães confirmaram, que, em contrapartida, não podiam ser responsabilizados pela precisão de produção desses componentes na gigantesca fábrica russa.  

O Samara era outro Lada que me deixou péssimas lembranças (Foto: Lada/divulgação)

O Samara que passou pela Quatro Rodas veio na época que eu cuidava da frota de testes da revista. Compramos um zero-km e ele foi colocado para rodar com vários motoristas para muitos pontos do Brasil de acordo com o cronograma de testes do Longa Duração.  

Em um período, esse Samara estava rodando à serviço do Guia Quatro Rodas na região centro-oeste do país, lá pelos lados do Mato Grosso. Uma repórter e um fotógrafo estavam com o Lada, e, num belo dia, recebi uma ligação dos dois, feita em um posto de beira de estrada: me avisaram que a porta do motorista não abria mais, por isso, de maneira descômoda, precisavam entrar e sair sempre pela porta direita. Nesse mesmo posto, um gentil frentista se propôs a resolver o problema, puxando a maçaneta e dando um tranco para tentar abrir a porta. O resultado foi catastrófico: a porta inteira, com retrovisor e tudo, caiu no chão! 

Num dos episódios de perrengues com o Samara, sua porta simplesmente caiu inteira (Foto: Lada/divulgação)

Aí descobriu-se o que tinha acontecido: os parafusos que a fixavam na dobradiça tinham se soltado, e ela se apoiou na trava do trinco. No tranco do frentista, o trinco se quebrou e a porta desmoronou no chão, desesperando a pobre repórter, que queria minha ajuda para saber o que fazer. Recolocaram-na em seu lugar, e não mexeram mais, deixando o problema para a equipe da concessionária na revisão seguinte. O controle de qualidade dos caras era tão ruim que nem o torque dos parafusos das portas eram corretos. Imaginem o restante do carro. Medonho! 

Outro desses, apontado como ruim era o Gurgel BR-800, de projeto e fabricação nacionais. O erro já vinha desde o projeto inicial do carrinho: motor de 800 cm³, dois cilindros, com pretensões de baixo consumo, mas com um enorme câmbio longitudinal, eixo cardã e tração traseira com diferencial! As ideias não batiam e, na realidade, seu trem-de-força deveria ser o mais leve e compacto possível, com transmissão transversal e tração dianteira. Seu motor era baseado no VW 1600 a ar, de certa forma cortado ao meio, tanto que a cilindrada era metade disso, gerando não mais que 6 mkgf de torque, atrelado a um grande câmbio de Opala quatro cilindros, que produzia quase 18 mkgf de torque.  

O BR-800 tinha uma crise de personalidade: perfil de carro urbano, popular e econômico, porém com um conjunto mecânico superdimensionado (Foto: Gurgel/divulgação)

Cardã e eixo traseiro vinham do Chevette, muito mais do que superdimensionados para um modelo urbano como aquele Gurgel, e, no frigir dos ovos, essa grande massa produzia um momento de inércia que o pobre motor de 800 cm³ tinha que vencer. Sacrificava o desempenho e o consumo. A alegação do fabricante, um tanto bizarra, era de que “o câmbio e o eixo traseiro durariam mais que o carro”. Lembro-me que no teste de aceleração, quando partíamos do zero arrancando de uma vez, os vidros das janelas corrediças abriam-se sozinhas, tamanha era a fragilidade do pequeno BR-800, sem contar sua duvidosa qualidade construtiva.

Duas lembranças do pequeno Gurgel: suas janelas que se abriam sozinhas nas acelerações e o molho de chaves que acompanhava o carro (Foto: Gurgel/divulgação)

E, como sua construção era feita a partir de componentes de várias marcas, tínhamos um calhamaço de chaves para cada carro: uma de certa marca para a fechadura das portas, outra diferente para o porta-malas, outra para a portinhola do tanque, outra para o contato, cada uma com o emblema de uma marca diferente. Era confuso. O carrinho estava, infelizmente, fadado ao fracasso.  

Mais um que me deixou péssimas lembranças foi um que não citarei a fabricante, afinal ela ainda está no nosso mercado, mas adianto que era um dos integrantes do time dos primeiros carros 1.0 nacionais, lá do início dos anos 90. A tal marca pegou seu menor carro e reduziu a capacidade cúbica do seu motor para 999 cm³. Na época do lançamento do tal carro, fiz a cobertura da novidade, e fui falar com a engenharia de motores para saber como eles chegaram na nova relação curso X diâmetro para atender a capacidade cúbica de 1.0 litro para se enquadrar na lei de redução de impostos dos “carros mil”.  

Lembro-me que fiquei horrorizado com o relato dos engenheiros, que chegaram ao novo diâmetro do cilindro simplesmente pensando na linha de produção e no diâmetro que permitisse que o pé da biela passasse pelo interior do cilindro. O novo curso foi decorrente do tal diâmetro que eles já sabiam. Na época, imaginei que eles deveriam ter trabalhado muito em fluxo de gases, atrito de pistão com cilindro, novos tempos de abertura e fechamento das válvulas pelo comando…que nada! Só fizeram o menor cilindro para caber o pé da biela.  

O tal “novo motor” era catastroficamente ruim: não tinha torque algum em quaisquer rotações, e por mais que a engenharia tivesse encurtado a relação do diferencial, o 1.0 não tinha força para fazer com que o carro saísse do lugar nas subidas mais acentuadas. Se tivessem dois ou mais ocupantes a bordo, esqueça: o motorista era obrigado a voltar de ré até o início da ladeira, embalar em 1ª marcha, acelerar forte e torcer para que o carro vencesse o aclive. Se parasse na subida, todo o procedimento precisaria ser refeito. Já imaginaram? Um carro sem força para sair numa ladeira? Imagina você e família a bordo dele, enfrentando esse tipo de perrengue na cidade. Pegar estrada? Nem pensar

O tal carro e o “novo motor” mal completaram um ano de mercado: quem dirigia no test-drive já torcia o nariz. Virou motivo de chacota e piadas e, mesmo depois de mais de 30 anos fora de linha, ainda é lembrado com risadas.  

Outro importado que desagradou, e nem era russo, foi o coreano Asia Towner. Além da carroceria visivelmente frágil, era pequeno e estreito, com um seríssimo problema de projeto: seu compacto motor ficava logo abaixo do banco do passageiro dianteiro, e, também na frente, ia a transmissão. Toda a massa da mecânica ficava na frente, em uma distribuição de peso muito desequilibrada. Algumas situações eram perigosas: numa descida muito íngreme, como essas que encontramos em garagens de prédios ou de estacionamentos de subsolo, se motorista viesse muito rápido, deixando para frear abruptamente no final do declive, o carro corria o risco de capotar de frente: assim como uma barata morta, a Towner ficava com as quatro rodas para cima, com o abusado motorista lá dentro.  

A vanzinha Towner era barata e com proposta interessante, mas que péssima distribuição de peso! (Foto: Asia/divulgação)

Pude ver um caso desses em São Paulo, e outro que me chamou a atenção, em meados dos anos 90: presenciei uma batidinha leve, daquelas de semáforo de trânsito, envolvendo uma Towner. Coisa corriqueira em qualquer cidade grande. O inusitado é que, depois do acidente, o motorista da vanzinha não descia do carro, que tinha sido danificado a ponto de a pedaleira prender seus pés. Digamos que, estruturalmente, ela devia muito. Por mais que tivesse problemas, o modelo fez sucesso no Brasil por ser barato e carregar bastante carga ou gente (até sete passageiros), ainda que o desempenho fosse limitado pelo seu motor de 0.8 litro de 40 cv.  

Havia também a versão furgão: essa, ao menos, podia ficar mais equilibrada se a carga fosse posta na parte posterior do baú (Foto: Asia/divulgação)

Tiveram outros carros marcantes que não deixaram boas lembranças, mas com problemas pontuais e bem mais toleráveis: um SUV coreano turbodiesel que era extremamente lerdo, um sedan francês que tinha dificuldade no contorno de curvas, uma perua nacional que ousava com superalimentação mas frustrava no desempenho, entre outros que nem lembro mais: de tão ruins, apaguei da memória.  

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Jornalista na área automobilística há 50 anos, trabalhou na revista Quatro Rodas por 10 anos e na Revista Motor Show por 24 anos, de onde foi diretor de redação de 2007 até 2016. Formado em comunicação na Faculdade Cásper Líbero, estudou três anos de engenharia mecânica na Faculdade de Engenharia Industrial (FEI) e no Instituto de Ensino de Engenharia Paulista (IEEP). Como piloto, venceu a Mil Milhas Brasileiras em 1983 e os Mil Quilômetros de Brasília em 2004, além de ter participado em competições de várias categorias do automobilismo brasileiro. Tem 69 anos, é casado e tem três filhos homens, de 22, 33 e 36 anos.